(LOPES, Fábio Motta. A ilegalidade da busca domiciliar realizada pela polícia militar. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 204, p. 02-03, nov., 2009).
Nos últimos dias, tem-se percebido uma tendência de
alguns (poucos, felizmente) magistrados de concederem, com a indiferença de
promotores de justiça,(1) mandados de busca e apreensão para serem cumpridos
por policiais militares, em atendimento à representação, em crimes comuns, dos
próprios milicianos. Talvez em nome da “segurança pública”, quando deveriam
preservar direitos fundamentais e a ordem jurídica, esses juízes não se dão
conta de que estão autorizando militares, em pleno regime democrático, a
ingressarem em residências de civis. Trata-se, pois, de uma flagrante
ilegalidade – que também acaba alimentando, ainda mais, a falta de integração
entre as polícias –, como se passará a expor.
É sabido que a Constituição Federal, no art. 144,
§§ 1º e 4º, conferiu às polícias judiciárias (Federal e Civis) as funções de
investigação criminal, exceto com relação aos crimes militares. Por sua vez, o
CPP, no art. 4º, também estabelece que a apuração das infrações penais e da sua
autoria é atribuição das polícias judiciárias.
Dessa forma, caberá a tais polícias – e não às
militares – a representação perante o Poder Judiciário por mandados de busca e
apreensão, bem como a realização das buscas domiciliares, atividade típica de
investigação criminal e voltada à garantia ou segurança da prova(2). Se assim
não fosse, a busca domiciliar não estaria regulamentada no Código de Processo
Penal, que a classifica como meio de prova(3)e que estabelece, a partir
do art. 240, a forma de cumprimento dessa medida cautelar.
Com isso, como bem registra Pitombo, os
mandados de busca e apreensão deverão ser cumpridos “pela polícia civil,
órgão da administração direta com função de polícia judiciária, nos limites de
sua atribuição”(4 ),cabendo à polícia militar, em vez de usurpar funções
conferidas a outros órgãos policiais, repassar às polícias judiciárias
eventuais informações que demonstrem fundadas suspeitas para buscas em
residências.
Aliás, há até mesmo quem sustente que os policiais militares
sequer poderiam realizar buscas pessoais, por também se tratar de uma medida
cautelar penal que, em razão dessa característica, somente estaria afeta às
polícias judiciárias(5).
À polícia militar, por outro lado, incumbe o
importante papel de exercer as funções de policiamento ostensivo e de
preservação da ordem pública (art. 144, § 5º, da CF), assim como a apuração de
crimes militares, razão pela qual, a contrario sensu, não se deve
conceder (e não se concede) às polícias judiciárias, nessas hipóteses, mandados
de busca e apreensão(6).
Não se pode esquecer, igualmente, que a
inviolabilidade do domicílio, direito fundamental assegurado no art. 5º, XI, do
texto constitucional, é a regra. Assim, para que seja afastada essa garantia,
deve-se observar o princípio constitucional do “devido processo legal” (art.
5º, LIV, da CF), que também se aplica na fase pré-processual(7). Em decorrência
desse princípio, em razão dos dispositivos já citados, só as polícias
judiciárias, no curso de investigações criminais formais(8), havendo fundadas
razões e com autorização judicial, é que poderão proceder à inviolabilidade de
domicílios em cumprimento a mandados de busca e apreensão. Os direitos
fundamentais servem para limitar o poder estatal e os policiais, a exemplo dos
demais servidores públicos, apenas poderão praticar atos autorizados pela lei,
o que não ocorre quanto a buscas domiciliares, nas infrações penais comuns, com
relação às polícias militares.
Analisando o princípio do due process of law,
explica Giacomolli que, no processo penal, desde a investigação, devem
ser observados, rigorosamente, as fórmulas e os ritos estabelecidos pelo
legislador, que se destinam ao estabelecimento de limites ao poder dos agentes
estatais(9). Destarte, existindo representação por buscas domiciliares e
cumprimento dessas diligências por órgão que não possua tal atribuição,
estar-se-á diante de flagrante inconstitucionalidade, por violação do princípio
do devido processo legal.
Em decorrência disso, ainda que se esteja diante de
um crime permanente e que o ingresso na residência tenha ocorrido em
cumprimento à ordem judicial, a prova obtida deverá ser considerada como
ilícita, por violação a normas constitucionais e infraconstitucionais. De fato,
o que motiva o ingresso dos militares em domicílios não é a certeza da
ocorrência de um crime – requisito necessário para a incidência do art. 303 do
CPP e de uma das exceções do art. 5º, XI, da CF (flagrante delito) –, mas a
ordem judicial. Assim, o encontro casual de algum objeto não serve para
legitimar uma violação de domicílio baseada em uma ilegal autorização judicial.
Como a polícia militar não tem legitimidade para
deduzir pretensão cautelar perante a Justiça Comum e não cabe à autoridade
judiciária substituir, indevidamente, a autoridade policial, a apreensão de
bens nessas circunstâncias deve ser considerada como prova ilícita, que afeta
as demais que dela decorrem, “contaminando integralmente o processo”(10),
em respeito ao art. 5º, LVI, da CF, e ao art. 157 do CPP. Sendo a prova ilícita,
não poderá o delegado de polícia realizar auto de prisão em flagrante nessas
situações, principalmente naquelas (não raras) ocasiões em que os presos, antes
de serem apresentados na Delegacia de Polícia, são encaminhados aos quartéis,
onde serão fotografados e “interrogados” pelos milicianos, em continuidade às
“investigações”.
Também é importante consignar que o juiz, apesar do
disposto no art. 242 do CPP, que deve ser interpretado de acordo com o texto
constitucional, não pode decretar de ofício medidas cautelares de busca e
apreensão. Em respeito ao sistema acusatório, adotado pelo sistema jurídico
brasileiro, e à necessária imparcialidade para julgamento, os juízes não devem
determinar, ex officio, medidas investigatórias de busca e apreensão(11).
Se deferir de ofício, porém, deverá enviar os mandados às polícias judiciárias
para cumprimento, em respeito à Constituição Federal.
Portanto, se a Magna Carta estabeleceu como regra a
inviolabilidade de domicílio, assegurou como cláusula pétrea a observância do
devido processo legal e definiu de forma clara as atribuições dos órgãos
policiais, somente as polícias judiciárias é que poderão realizar buscas
domiciliares, função eminentemente de investigação criminal. Como bem salientou
a min. Ellen Gracie, em voto proferido na ADI 3.614/PR, que declarou a
inconstitucionalidade de decreto paranaense que conferia a policiais militares
funções exclusivas de delegados de polícia, entre as quais a lavratura de termo
circunstanciado, “as duas polícias, civil e militar, têm atribuições,
funções, muito específicas e próprias, perfeitamente delimitadas” na
Constituição Federal e que não podem ser confundidas.
Interpretar em sentido contrário é banalizar a
violação de domicílio e abrir um precedente perigoso no sentido de que, em
breve, também se faça uma construção para que o Exército entre em residências a
pretexto de “preservar a ordem pública”. A conclusão decorre de um raciocínio
lógico: se as polícias militares, que são forças auxiliares do Exército (art.
144, § 6º, da CF), “podem” proceder a buscas domiciliares, por que não se
poderia estender tal atribuição às Forças Armadas?
Nunca é demais lembrar que, no processo penal, a
busca da verdade (ou da reconstrução histórica dos fatos) é limitada pelas
normas e pelos princípios constitucionais. Como registra Badaró, no “processo
e, principalmente, na atividade probatória, os fins são tão importantes quanto
os meios”, não sendo a busca da verdade “um fim que possa ser atingido a
qualquer custo” (12).
Fonte:
http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php?id=3974
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